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Por Ricardo Lopes Kotz e Helton Ouriques*
É possível perceber o início de uma inflexão na formulação da estratégia internacional da China a partir do ano de 2010, quando o PIB do país superou o do Japão e surge a necessidade de um posicionamento mais incisivo no seu entorno regional. A partir de 2012, com o mandato do Presidente Xi Jinping, que iniciou em 2012, emerge a aspiração de concretizar uma postura mais propositiva no âmbito regional, sob os motes da busca pela realização (striving for achievement, no original) e o rejuvenescimento da nação chinesa (XUETONG, 2014).
Expandindo a estratégia Going Global, o mandatário chinês Xi Jinping lançou a Belt and Road Initiative (BRI ou Iniciativa Cinturão e Rota) em 2013, que consiste em uma ampla visão acerca do posicionamento internacional da China. Inicialmente focada na construção de infraestrutura e no estímulo aos investimentos internacionais, atualmente a Iniciativa se ramificou para diversas áreas. Até o momento, o BRI compreende mais de 100 países, abrangendo mais de 62% da população mundial, 30% do PIB global e 75% dos recursos energéticos disponíveis (THE WORLD BANK, 2019). Ela se tornou a principal política externa da administração de Xi Jinping.
A BRI tem como objetivos o aumento da conectividade do espaço eurasiático, a alocação eficiente de recursos e a coordenação de políticas econômicas, de modo a promover uma arquitetura regional de cooperação que seja aberta, inclusiva e que estimule o desenvolvimento conjunto dos países envolvidos no processo. Estes objetivos serão alcançados através da construção de capacidades, da cooperação financeira, da liberalização do comércio e de investimentos (STATE COUNCIL OF THE REPUBLIC OF CHINA, 2015).
A BRI compreende dois eixos principais: a Rota da Seda Marítima (Maritime Silk Road) e o componente terrestre, denominado Cinturão da Rota da Seda (Silk Economic Belt). Inicialmente, a BRI compreendia seis corredores econômicos: 1) a Nova Ponte Terrestre Eurasiática (que chegará ao território europeu); 2) o corredor econômico China-Mongólia-Rússia; 3) o corredor econômico China-Ásia Ocidental (chegando ao Oriente Médio); 4) corredor econômico China-Península da Indochina; 5) o corredor econômico China-Paquistão; e, finalmente, 6) o corredor econômico Bangladesh-China-Índia-Mianmar.
Em janeiro de 2018, na cidade de Santiago, Chile, a China convidou oficialmente a América Latina a participar da BRI. O governo chinês assinou 173 acordos de cooperação com 125 países e 29 organizações internacionais.
A iniciativa possui cinco principais eixos de atuação: 1) comunicação; 2) conectividade (infraestrutura de transporte); 3) aumento dos fluxos monetários; 4) facilitação do comércio e 5) migração, visando à criação de uma área de cooperação que se estende desde o Pacífico Oeste indo até o mar Báltico (SARVÁRI e SZEIDOVICZ, 2016).
Os pronunciamentos do Governo chinês enfatizam a criação de um espaço de circulação de bens, ideias, pessoas e investimentos que seja aberto e multicultural, evocando o espírito da Rota da Seda (STATE COUNCIL OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA, 2015). Mantêm-se o discurso do desenvolvimento pacífico de Deng Xiaoping, mas claramente acrescenta-se a estes princípios um tom mais propositivo, apresentando uma contribuição da China para o ordenamento global.
O presidente Xi Jinping (2017) também expressou o desejo de contribuir para a ordem mundial existente por meio da provisão de bens públicos globais, como financiamento para infraestrutura.
O Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC) é o eixo mais desenvolvido nos investimentos da BRI, sendo que foram inicialmente acordados 176 projetos de construção em diversas áreas, tais como usinas de energia, ferrovias, gasodutos, oleodutos e redes de cabos de fibra ótica. Estima-se que até 2030 sejam investidos US$ 75 bilhões no CPEC (AHMAD; BHATTI; MUSTAFA, 2020).
O corredor econômico ligará a província de Xinjiang na China até o Porto de Gwadar, província de Baluchistan, no Paquistão, constituindo uma rede de rodovias e ferrovias em um trajeto de 3.218 quilômetros e contando com a construção de usinas energéticas ao longo do caminho.
A conclusão do eixo econômico está prevista para o ano de 2030 e o mesmo encurtará em 12.000 quilômetros o trajeto de acesso da China em relação ao petróleo e gás natural proveniente do Oriente Médio, que na atual conjuntura passam em larga escala pelos Oceanos Índico e Pacífico (SYED; YING, 2020).
O estreitamento das relações com o Paquistão pode conceder uma rota de acesso para que as províncias situadas no Oeste da China se conectem ao Oceano Índico. Este movimento teria consequências estratégicas importantes para a região. Portanto, as relações com o Paquistão podem facilitar o acesso da China aos recursos energéticos provenientes do Oriente Médio e da África, além de constituir um importante aspecto de conexão entre os componentes marítimos e terrestres da BRI.
A consolidação de boas relações com os países situados no seu entorno estratégico, nomeadamente a Ásia Central, a Ásia Meridional e a Ásia Oriental, são essenciais para o processo de ascensão da China enquanto potência. Uma das ações desenvolvidas pela China consiste no esforço de projeção para o Oeste (KAI, 2016).
As dimensões marítimas e terrestres da BRI não possuem diferenciação explícita neste sentido, pois elas se retroalimentam e visam aumentar a influência da China nos espaços geoestratégicos do Oceano Pacifico da Eurásia continental. Isto ocorre através do estabelecimento de hubs comerciais, através dos investimentos em infraestrutura e de esforços político-diplomáticos no sentido de formar maiores vínculos com os países da Eurásia (AOYAMA, 2016; LOBELL, 2016).
O discurso chinês visa enunciar uma mudança no pensamento estratégico tradicional de competição geopolítica para cooperação, através do aporte de recursos para o desenvolvimento, consolidando os seus interesses nacionais através de fluxos econômicos, o que corresponde ao exercício dos instrumentos da geoeconomia (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
A BRI apresenta uma direção de longo prazo para a ação geoestratégica da China, devendo se estender pelos próximos 30-40 anos (HONG, 2016), sendo um dos eixos que podem contribuir para a ascensão da china como uma potência com suas próprias características (XIAOYU, 2017).
A construção de infraestrutura visando contribuir para o aumento da conectividade é uma das principais contribuições que a China aporta no âmbito regional, através de sua própria experiência econômica interna. Atingir o desenvolvimento econômico através da cooperação para ganhos mútuos (win-win) são a importante dimensão conceitual deste processo (DUNFORD e WEIDONG, 2016; XIAIOYU, 2017).
Consequentemente, a Nova Rota da Seda pode ser vista como um projeto pacífico, porém pragmático, de aumento da zona de influência da China em uma região de grande relevância geopolítica e econômica, como é o caso da Eurásia (PLOBERGER, 2017). Posteriormente a BRI se expandiu, chegando a englobar territórios além da massa terrestre eurasiática.
A ascensão de uma nova potência não depende exclusivamente do poder militar ou econômico, mas é influenciada pelos interesses e pelo modo como o poder é exercido, constituindo fundamentalmente um processo de barganhas e negociações. Neste caso, o conceito de potência em ascensão ou potência emergente é definido como um ator que precisa ser consultado para que haja mudança no status quo, mas que ainda não é capaz de determinar unilateralmente a sua própria agenda política para o âmbito sistêmico (NARLIKAR, 2013).
A BRI dependerá da aceitação pelos demais Estados participantes de que os preceitos pretendidos pela China atendem aos seus interesses. A abundância de recursos materiais não garante o exercício de influência ao longo da iniciativa. Assim, para ser bem-sucedida, deve haver uma noção geral de que os princípios promovidos pela China beneficiam os demais Estados que participam da BRI. Portanto, a resposta dos países membros será um importante condicionante para o sucesso da mesma. Os princípios servirão como base importante para que a BRI consiga efetivamente consolidar sua legitimidade (JI, 2015).
Entre os princípios delineados pela diplomacia chinesa, destaca-se a possibilidade de ganhos mútuos (win-win); o aumento da conectividade entre as nações; o crescimento dos fluxos de comércio e de investimentos que, por sua vez, levariam maior desenvolvimento aos países envolvidos.
O resultado seria a criação de uma zona aberta de cooperação, integração e intercâmbios materiais e culturais, que o discurso oficial denomina como uma Comunidade com um Destino Comum (STATE COUNCIL OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA, 2015).
A criação da comunidade com um destino comum se refere a um projeto inclusivo para a posição internacional da China, que atuaria como um ponto central de articulação geoeconômica, provendo bens públicos para os países vizinhos e além. Isto se materializa através da noção de promoção do desenvolvimento pela via da construção de infraestrutura e adensamento do comércio e dos fluxos de investimento.
Tal visão faz referência à centralidade do Império chinês na articulação das rotas de comércio na Eurásia durante o período pré-moderno (antes do ano de 1453, ponto de desarticulação da Rota da Seda). O sistema sinocêntrico ou sistema imperial chinês possuía fundamentos materiais, através da força econômica e militar, mas se articulava com os vizinhos através de rituais e valores que consolidaram redes de comércio e interação, colocando a China no centro do sistema político-econômico asiático.
Por fim, embora tenha surgido como um plano para a construção de infraestrutura através da Eurásia, a Belt and Road Initiative é um amplo conceito para se compreender a posição da China no sistema internacional, sobretudo na condução de suas relações com outros países emergentes. Portanto, mais do que um plano específico, a BRI tornou-se uma nova forma, concreta, de compreensão das Relações Internacionais da China com o Sul Global.
Objetivos diversos
A BRI materializa uma confluência de objetivos domésticos e internacionais da China, fator que a consolida como uma Grande Estratégia.
No plano doméstico: 1) um estímulo à economia chinesa visando ao aumento das exportações de bens e serviços; 2) extensão do desenvolvimento chinês para o oeste e desenvolvimento de novos setores do seu tecido produtivo.
No plano internacional: 1) significa uma continuação da estratégia Going Global, lançada no ano 2000; 2) representa um componente estratégico de projeção política; 3) segundo a visão chinesa existe uma dimensão de contribuição à ordem internacional, através de bens públicos globais, auxiliando no desenvolvimento de países emergentes através da emissão de IED e da cooperação.
A BRI tem objetivos diversos dependendo da região onde esteja sendo executada. Ou seja: a forma de atuação e os objetivos da China na África, por exemplo, não serão os mesmos que na Europa Oriental ou na América Latina, por exemplo. A estratégia geoeconômica da China inclui a compra de empresas estrangeiras, adquirindo consequentemente a sua tecnologia, além de setores de pesquisa e desenvolvimento; como se observa de forma mais significativa na Europa (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Os investimentos chineses destinados à facilitação do acesso e escoamento aos recursos naturais de várias regiões tais como a Eurásia, a África e a América Latina, são outro exemplo de exercício da geoeconomia chinesa (OURIQUES, 2014). Incluindo igualmente a concessão de empréstimos aos mais variados Estados, como uma forma de promoção de boa vontade e da cooperação. Através dos seus investimentos a China vem consolidando uma robusta ferramenta diplomática para exercer influência e atingir seus objetivos estratégicos (BLACKWILL; HARRIS, 2016).
Neste sentido e tendo em mente as lentes de análise da geoeconomia e da grande estratégia chinesa, é possível afirmar que em relação à sua motivação, a emissão de investimentos externos diretos chineses tem motivações distintas dependendo do território: 1) pode ser resource seeking, buscando recursos naturais necessários para a manutenção do seu desenvolvimento econômico, 2) pode visar o posicionamento estratégico em setores econômicos de diferentes países; 3) significa inserção em mercados de porte e/ou que estejam em expansão; 4) implica a aquisição e desenvolvimento de tecnologia; 5) contribui para diferentes aspectos do poder nacional e consecução de interesses de Estado; 6) fortalece parcerias estratégicas com países de diversas regiões através da cooperação.
Em termos de política externa a BRI é um conceito amplo, que traz a visão da China sobre a sua posição no sistema internacional.