Por Ricardo Lopes Kotz e Helton Ouriques*
O ressurgimento da República Popular da China (RPC) no cenário internacional vem demonstrando uma acelerada trajetória rumo à promoção do desenvolvimento econômico e social. Governado pelo Partido Comunista, o país tirou 800 milhões de pessoas da pobreza desde que começou o processo de reformas e abertura em 1978 (THE WORLD BANK, 2018).
Além disto, a renda per capita de sua população passou de menos de US$ 1.000 no ano de 1978 para mais de US$ 7.000 em 2018, sendo agora um país de renda média, com uma população de 1.4 bilhão de pessoas. A
RPC representava 3% da economia global quando o então mandatário Deng Xiaoping iniciou o processo de reformas e abertura econômica da nação e atualmente o seu PIB representa aproximadamente 19% do total
mundial (CAI; GARNAUT; LIGANG, 2018, p. 7-12).
No que diz respeito à sua atuação internacional, o país afirmava desde o período de Deng Xiaoping a sua postura de baixo perfil (low profile), na qual a China se limitava a participar da ordem internacional, com foco na promoção do seu desenvolvimento econômico doméstico e sempre com uma postura pacífica e aparentemente sem aspirações de reforma ou quaisquer mudanças acerca do sistema internacional.
O ano de 2013 representa um ponto de inflexão e mudança, quando o mandatário Xi Jinping propôs a Nova Rota da Seda ou Inicitativa Cinturão e Rota (Yi dai, Yi lu 一带一路 em mandarim)4, em um discurso proferido na cidade de Astana, no Cazaquistão. A Belt and Road Initiative (BRI), como é chamda internacionalmente, consiste em um plano para a construção de infraestrutura abrangendo mais de 70 países, 62% da população global, mais de 30% do PIB mundial e 75% dos recursos energéticos disponíveis (THE WORLD BANK, 2018).
A trajetória bem-sucedida no desenvolvimento econômico ressalta a importância de que sejam produzidas análises críticas sobre a atuação internacional da China, sobretudo em um contexto no qual o país se posiciona de forma mais propositiva no cenário global. Após pouco mais de cinco anos de execução da BRI é possível realizar um balanço dos seus resultados iniciais.
A inserção internacional da China pode ser analisada através de dois marcos temporais: 40 e 20 anos, demonstrando a linha de continuidade que vem desde o processo de reformas e abertura conduzido por Deng Xiaoping (1978), passando pelo marco da estratégia Going Global (2000) e chegando até a Nova Rota da Seda. O fio condutor e principal objetivo levado adiante pela China nesta trajetória é a busca pelo desenvolvimento econômico, visto como o aumento do PIB, da renda per capita, das condições de vida de sua população e da ascensão das empresas chinesas aos segmentos produtivos mais sofisticados das cadeias globais de valor.
A geoeconomia
No ano 2000 a China possuía 10 empresas na lista da Fortune 500, que designa as maiores empresas do mundo. Ao final do ano de 2019 o país possuía 119 empresas na lista. Se as empresas de Taiwan forem consideradas, a China passa a possuir 129 empresas na lista citada, o que faria com que ultrapassasse as 126 empresas norte-americanas (FORTUNE, 2019), um fato inédito na história do capitalismo contemporâneo. Entre as 119 firmas listadas, 82% são estatais.
Neste sentido, o emprego de recursos geoeconômicos é um dos instrumentos que auxiliam na compreensão do caso chinês. A emissão de investimento estrangeiro direto por parte de grandes empresas provenientes da China, sobretudo as estatais, acaba por corresponder simultaneamente a interesses de mercado (a busca pelo lucro), havendo intersecção com metas relacionadas ao interesse nacional (MILAN; SANTOS, 2014).
Os estudos estratégicos empregam o conceito definido como geoeconomia, para evidenciar a relação entre fatores geográficos e o emprego de políticas econômicas. Este conceito evidencia o uso de recursos econômicos para atingir fins geopolíticos, ou metas correspondentes ao interesse nacional (BLACKWILL; HARRIS, 2016). Este é um importante conceito para compreender a atuação recente da China (HONG, 2016; XIAOYU, 2017). Em outras palavras, a geoeconomia pode ser vista como a continuação da geopolítica por outros meios.
O crescimento econômico e tecnológico tornou a China uma potência regional com impacto geopolítico em toda a Eurásia. O país faz fronteira com 14 Estados e possui fronteira marítima direta com outros três (Japão, Filipinas, Coreia do Sul e Taiwan – não reconhecido pela China como um Estado independente). A população dos seus vizinhos gira em torno de dois bilhões de pessoas e a população da China é atualmente de 1.4 bilhão, fazendo com que cerca de metade da população global seja afetada pelas ações geoestratégicas deste país. Esta preponderância influencia igualmente as regiões da Ásia Oriental e da Eurásia como um todo (COHEN, 2015).
No caso particular da RPC, quatro interesses estratégicos principais são de importância fundamental para entender o comportamento internacional do país: 1) Manter a segurança e a integridade territorial do país, o que inclui evitar movimentos separatistas nas suas províncias à Oeste (FERDINAND, 2016; SORENSEN, 2015); 2) A manutenção da estabilidade do regime do Partido Comunista da China (PCCh); 3) A manutenção do processo de desenvolvimento econômico e social (CAI, 2015; KROEBER, 2016; ROLLAND, 2017), 4) reforçar o argumento da ascensão e do desenvolvimento por vias pacíficas, evitando a percepção por parte da comunidade internacional de que a China seja uma ameaça ou tenha objetivos revisionistas em relação ao ordenamento global (BUZAN, 2014; DANNER, 2018; SHAMBAUGH, 2016).
A tradição estratégica da China favorece o pensamento de longo prazo e a acumulação de vantagens através dos anos. Isto se deve ao fato de que historicamente o Império chinês lidava com um duradouro sentimento de insegurança, devendo atuar simultaneamente com inimigos localizados em diversas fronteiras geográficas. Assim, a estratégia do Império era cercar os seus inimigos lentamente, através da sucessiva acumulação de vantagens relativas. A tradição estratégica chinesa, portanto, apresenta claras diferenças em relação à tradição estratégica
Ocidental, que prima por vitórias decisivas e finais, ou atos de heroísmo (KISSINGER, 2011).
A flexibilidade estratégica do pensamento chinês visa evitar os confrontos diretos. Elaborando através da tradição do pensamento do estrategista Sun Tzu, Kissinger (2011) afirma que o objetivo do Império chinês era evitar o conflito armado, focando nos seus objetivos políticos e como eles se imiscuem com a condução tática e estratégica. Derrotar o objetivo político do adversário sem precisar atacá-lo seria o êxito máximo, reduzindo a sua posição e sua força de forma gradual (KISSINGER, 2011).
Elementos de realpolitik, ou seja, cálculos pragmáticos baseados em interesses, coadunam-se com princípios confucianos, como a necessidade de equilíbrio, valorização da harmonia, possibilidade de cooperação para
ganhos mútuos, além do foco no aspecto moral da política, ou seja a ideia de atuar de forma a firmar um exemplo virtuoso (RUONAM, FENG, 2015).
A Grande Estratégia da China no sistema internacional têm sido o de desenvolvimento e/ou ascensão pacífica. Este arcabouço político que partiu desde 1978 abrange a estratégia de desenvolvimento pacífico da China, surgida a partir da Doutrina de Política Externa de Deng Xiaoping, e continuou sob os mandatos de Jiang Zemin (1990-2002) e Hu Jintao (2002-2012) (BUZAN, 2014).
Neste contexto, a China deveria esconder suas forças e mostrar algumas de suas fraquezas, a fim de não incutir um sentimento de possível conflito em relação a outras potências. Segundo Danner (2018, p. 33), a estratégia de desenvolvimento pacífico da China poderia ser resumida pelos seguintes pontos:
[冷静观察] Lengjing guancha (fazer observações à distância)
[稳住阵脚] shuozhu zhendi (assegurar sua posição)
[沉着应付] chenzhuo yingfu (lidar com problemas calmamente)
[韬光养晦] taoguang yanghui (utilizar suas capacidades e dedicar seu tempo)
[善于守拙] shanyu shuozhuo (manter um perfil discreto)
[决不当头] juebu dangtou (nunca reivindicar a liderança)
[有所作为] yousuo zuowei (fazer a diferença)
Grande Estratégia é um termo que compreende todos os planos e políticas de Estado, envolvendo o uso de recursos políticos, diplomáticos e econômicos para a obtenção dos interesses nacionais. Para além de elementos discursivos, o conceito de Grande Estratégia envolve ações práticas. Neste sentido: “A grande estratégia pode ser definida como a segurança geral a longo prazo e políticas externas de um estado territorial. A grande estratégia atende à interesses nacionais de um estado através do uso de todos os meios disponíveis para tal, ou seja, compreende as ferramentas econômicas, militares, diplomáticas, políticas, financeiras e de informação” (DANNER, p. 2, 2018).
O conceito representa a gestão e o emprego dos recursos de um Estado com a finalidade de atingir seus interesses de longo prazo. A próxima seção abordará o processo de reformas e abertura da China, momento essencial de mudança político-econômica que contribuiu em grande medida para que o país atingisse os níveis de concentração de capital e desevolvimento sócio-econômico vistos atualmente.