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Andrey Kortunov*
A humanidade atualmente passa por um processo demorado e complicado de “desglobalização”. Resta saber se esse processo é inevitável e historicamente predeterminado. Se não for esse o caso, pode-se especular sobre quem deve ser responsabilizado por tal reviravolta.
De qualquer maneira, a crise financeira global de 2008-2009 e a recuperação pós-crise de 2010-2013 enviaram um sinal claro de que a globalização dificilmente seria um processo linear e muito menos exponencial. Após a crise, algumas das principais dimensões da conexão global (comércio internacional, investimentos estrangeiros diretos) voltaram aos níveis anteriores à crise apenas em meados da década de 2010, despencando novamente no final daquela década.
Tendências centrífugas, tanto de dimensões políticas quanto econômicas, já acumularam um poderoso impulso no mundo moderno. Seria bastante ingênuo esperar que um único evento internacional – embora significativo – pudesse revertê-los ou impedi-los. A tarefa imediata da comunidade internacional nos próximos anos parece ser cortar custos e reduzir os riscos associados à desglobalização econômica e política.
Apesar dessa tarefa formidável, não se deve descartar as tendências globais de longo prazo. Há poucas dúvidas sobre o retorno da globalização de uma forma ou de outra. Dois fatores principais empurram o mundo nessa direção, com ambos ficando mais fortes com o tempo, não importa o que os antiglobalistas tenham a dizer hoje.
Em primeiro lugar, a humanidade sente uma pressão cada vez maior de problemas e desafios comuns, que vão desde a mudança climática em ritmo acelerado até as ameaças de novas pandemias e a iminente redução dos recursos globais. Para o bem da nossa sobrevivência, essas questões exigem alguma forma uma ação conjunta. O instinto de autopreservação da espécie humana deveria eventualmente abraçar a “globalização 2.0”.
Em segundo lugar, a desglobalização em curso não impediu o progresso técnico. Pelo contrário, o progresso técnico está mais rápido do que nunca e continua a fornecer novas oportunidades para comunicações remotas de vários tipos. O espaço físico global e o conjunto de recursos globais estão encolhendo, enquanto os modelos viáveis de trabalho, educação, entretenimento, atividades sociais e políticas distribuídas geograficamente se multiplicam. O velho ditado de Napoleão de que “geografia é destino” está deixando de ser um axioma. Em certo sentido, dado seu impulso para atividades online, a pandemia da Covid-19 acabou sendo um Grande Equalizador, que corroeu muitas das hierarquias tradicionais e barreiras internacionais.
Eventualmente, anunciaremos o início de um novo ciclo de globalização. Esta “globalização 2.0” será marcadamente diferente do que vivemos no início deste século, mas evoluirá em uma direção muito semelhante, mantendo algumas das características essenciais do ciclo anterior. Se tomarmos a crise global de 2008-2009 como ponto de partida e assumirmos que o mundo de hoje já está no nível mais baixo ou perto do nível mais baixo da desglobalização em curso, podemos prever com segurança a próxima reviravolta na conexão global que ocorrerá em meados da década de 2020.
Devemos levar em conta a natureza mais complexa e abrangente da crise de 2020-2021 em comparação com a de 2008-2009, e teríamos que adiantar o momento da reviravolta em dois, três ou até cinco anos – um pouco mais perto do final da terceira década do nosso século.
Afinal, prever o momento exato da reversão e da chegada da “globalização 2.0” não é tão importante. O que é realmente importa é tentar prever os parâmetros fundamentais do novo ciclo de globalização que o tornará muito diferente do que a humanidade viveu no início deste século.
Globalização sem hegemonia
Globalização do final século 20 e início do 21 coincidiu com o auge histórico do poder e da influência internacional dos Estados Unidos. O novo ciclo de globalização será totalmente diferente deste modelo hegemônico.
É improvável que os Estados Unidos continuem sendo o motor indispensável da “globalização 2.0”. É mais provável que vejamos o modelo horizontal de globalização, verdadeiramente baseado no multilateralismo genuíno, avançando.
Já existem exemplos deste modelo. Por exemplo, no final de 2020, quinze nações do Pacífico Asiático assinaram um acordo para formar a Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP). O acordo deu origem à maior zona de livre comércio do mundo, com 2,2 bilhões de pessoas e PIB de US$ 28 trilhões, cerca de um terço do PIB global. Ao contrário do que se poderia imaginar, não foi a China que desempenhou o papel central no lançamento do RCEP. Os verdadeiros impulsionadores dos acordos foram as nações da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), que trabalharam neste ambicioso projeto por cerca de vinte anos.
Globalização sem centro e sem periferia
No alvorecer do ciclo anterior de globalização, a visão comum era que suas ‘ondas’ se espalhariam principalmente a partir do núcleo econômico, tecnológico e político do mundo moderno, ou seja, do “Grande Oeste”, para sua periferia. Grandes países semiperiféricos como China, Rússia, Índia e Brasil deveriam servir como mecanismos de transmissão neste processo.
Os primeiros profetas da globalização também presumiram que, à medida que nos afastamos do centro para a periferia, a resistência à globalização aumentará, dando origem a conflitos e guerras comerciais, além de semear o isolacionismo e o nacionalismo. Essas ‘contra-ondas’ retardariam o processo geral de globalização, mas não afetariam profundamente o núcleo global, sendo gradualmente enfraquecido no curso de sua proliferação a partir da periferia. Enquanto a periferia permaneceu fragmentada por algum tempo, o núcleo continuaria se consolidando.
No entanto, para a “globalização 2.0”, os termos de engajamento serão muito diferentes desse padrão. As ‘ondas’ da globalização provavelmente irão na direção oposta, da periferia global para o centro global. O “Grande Oeste” já está tentando se isolar ou – pelo menos – se proteger do Sul Global, limitando a migração internacional, reinstalando o protecionismo, repatriando indústrias do exterior, demonstrando vulnerabilidades crescentes ao nacionalismo e à xenofobia. Essa mudança reflete uma mudança fundamental contínua no equilíbrio do poder econômico entre o centro global e a periferia. Em 1995, às vésperas da “globalização 1.0”, o PIB das sete principais economias emergentes – China, Índia, Rússia, Brasil, Indonésia, Turquia e México – correspondia a cerca de metade do PIB do G7, que inclui os EUA, Reino Unido, França,Alemanha, Japão, Canadá e Itália. Em 2015, os PIBs dos dois grupos eram praticamente iguais. Em 2040, os “sete emergentes” serão duas vezes mais poderosos em termos econômicos que os “sete desenvolvidos”.
O núcleo global ainda desfruta de uma grande vantagem sobre a periferia global – deveríamos preferir dizer a antiga periferia global? – em termos de seus respectivos níveis de envolvimento nos principais processos de globalização. No entanto, essa vantagem está diminuindo rapidamente. Por exemplo, a China ultrapassou os Estados Unidos em 2020 como líder global no recebimento de investimentos estrangeiros diretos. A questão sobre quem deve liderar a “globalização 2.0” permanece em aberto. Pode-se até questionar se a “globalização 2.0” pode ter um único centro geográfico ou se deve estar associada a uma determinada região ou grupo de nações. É mais provável que o próximo ciclo de globalização evolua como um processo em rede sem uma hierarquia geográfica claramente definida.Toda a distinção entre o centro global e a periferia global pode perder completamente seu significado, uma vez que virtualmente todos os países do mundo apresentam elementos tanto do primeiro quanto do segundo.
Desenvolvimento sustentável em vez de crescimento econômico linear
O ciclo anterior de globalização foi de aceleração do crescimento econômico e aumento do consumo privado e público. Notavelmente, a “globalização 1.0” muito contribuiu para superar a pobreza global e expandir a classe média globalmente, especialmente na Ásia. Há vários fatores que contribuíram para o sucesso de muitos projetos ambiciosos de modernização nacional comércio internacional florescente, o aumento dos investimentos estrangeiros diretos e o surgimento de cadeias econômicas e tecnológicas transnacionais sustentáveis. Por causa dessas mudanças positivas, muitos no mundo ficaram convencidos de que “a maré alta levantaria todos os barcos”, o que significa que os benefícios da globalização acabarão se tornando disponíveis para todos no planeta.
Até certo ponto, essa suposição acabou sendo válida. O habitante médio da Terra vive uma vida melhor, mais bem-sucedida e mais longa em comparação com a de seus pais há trinta anos. Ainda assim, a globalização falhou em distribuir seus benefícios entre a população global de uma maneira inquestionavelmente justa. Pelo contrário, a “globalização 1.0” dividiu o mundo em novos vencedores e novos perdedores. Aparentemente, a fronteira entre o primeiro e o último nem sempre separa os estados ‘bem-sucedidos’ dos países ‘malsucedidos’. Mais frequentemente, observamos divisões cada vez mais profundas dentro dos estados – entre certos grupos demográficos e profissionais, entre áreas metropolitanas e rurais, entre regiões ricas e pobres, e assim por diante. Em suma, as novas divisões emergem entre aqueles que foram capazes de se encaixar no novo modo de vida e aqueles que não conseguiram. Por exemplo,a renda média da metade mais pobre das famílias americanas não experimentou nenhum aumento nos últimos quarenta anos, mas apenas um declínio constante. Nem é preciso dizer que tal situação serve de solo fértil para várias formas de agitação social e populismo político.
A “Globalização 2.0” provavelmente mudará os critérios de sucesso. Altas taxas de crescimento econômico ainda serão importantes, mas cumprir as metas de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas se tornará ainda mais importante do que retornar o crescimento econômico. Essa mudança significa que , no futuro, deve-se dar muito mais atenção às questões de equidade social, qualidade de vida, agendas ambientais e climáticas, construção da comunidade, segurança pessoal e pública, etc. O aumento linear do consumo privado e público não é sustentável. Ele dará lugar a indicadores muito mais matizados de ‘consumo inteligente’. Além disso, todo o conceito de ‘sociedade de consumo’ passará por mudanças bastante radicais.Os países competirão com frequência cada vez maior entre si em termos de oportunidades gerais de autorrealização que podem oferecer aos seus cidadãos, em vez de em termos simples de índice de Produto Nacional Bruto per capita.
Motivadores sociais em vez de motivadores financeiros
As empresas transnacionais estiveram na vanguarda da “globalização 1.0”. A internacionalização dos mercados financeiros, a competição interestadual pelo acesso a investimentos estrangeiros, a crescente mobilidade geográfica e setorial de capital, a emergente comunidade de gestores financeiros globais reunidos por suas habilidades profissionais. Todas essas tendências tiveram um impacto profundo no mercado, na política e até mesmo na cultura de massa e estilos de vida.
No entanto, a crise financeira de 2008-2009 expôs sérias limitações desse modelo de globalização. O capital transnacional avançou muito rapidamente e se afastou muito da base de produção nacional, bem como do ambiente social doméstico. Profissionais tecnocratas se tornaram um símbolo de ganância, relativismo moral e irresponsabilidade social. A política começou a ofuscar a economia e ditar decisões que se distanciavam da perspectiva de viabilidade econômica.
Há razões para acreditar que a “globalização 2.0” terá principalmente motivações sociais e não financeiras. Ainda hoje, com o comércio internacional e os investimentos estrangeiros diretos em queda, é importante ressaltar que os fluxos globais de informação continuam crescendo em altíssima velocidade.
A pandemia tornou-se um poderoso fator para que a humanidade se desuna. No entanto, este é apenas seu impacto imediato. O impacto a longo prazo pode muito bem ser o oposto, uma vez que a crise sanitária mundial acabou se mostrando um acelerador extraordinário de novas tecnologias de informação e comunicação. Não seria exagero argumentar que uma das características mais notáveis do mundo pós-pandemia é o surgimento da primeira sociedade civil verdadeiramente global. ONGs de alcance mundial, comunidades profissionais, movimentos públicos e as coalizões de defesa provavelmente desempenharão um papel mais ativo na “globalização 2.0” do que as antigas elites financeiras dos Estados. Se assim for, podemos concluir que essa nova globalização terá uma base social muito mais ampla e robusta do que o ciclo anterior de globalização
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