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Por Pedro Merheb
Agora que a presidência do G20 repousa em colo brasileiro, caberá ao Brasil sediar o encontro do grupo ano que vem, e, com isso, proceder à especulada detenção do presidente russo caso este dê as caras por aqui.
Não há nada mais desconfortável para um chefe de Estado que a notícia de que ele será promovido a algoz de um relevante aliado se ele desembarcar em suas terras. Intimidado com a hipótese, o presidente da República desconversou, confrontou o poder do TPI e passou o abacaxi para a Justiça – e com acerto, pois esse abacaxi nunca pertenceu ao presidente da República em primeiro lugar.
Antes de chegarmos lá, façamos alguns esclarecimentos de ordem processual a respeito das obrigações dos Estados-partes perante o TPI para sanear alguns equívocos que permeiam a controvérsia.
Primeiramente, o Tribunal Penal Internacional, como qualquer Tribunal com essa vocação, pode expedir mandados cautelares para que o acusado em determinado inquérito seja levado à Corte (art. 58 do Estatuto de Roma). Isso não significa, entretanto, uma obrigação automática para que um Estado-parte proceda à prisão do acusado quando ele se encontrar em seu espaço territorial.
Os Estados sob a jurisdição do TPI apenas são obrigados a cooperar com os atos deste quando o Tribunal formaliza um pedido nos termos do art. 87, que instrumentaliza a cooperação dos Estados-partes com o Tribunal.
Assim, os mandados de prisão expedidos pelo TPI não ostentam, por si só, a imperatividade que alguns canais de comunicação nacionais e internacionais têm ingenuamente transmitido, apenas vinculando a jurisdições interna mediante pedido formal de detenção encaminhados ao Brasil quer pela via diplomática, quer pela autoridade central exercida pelo Ministério da Justiça (art. 26, § 4º, do CPC) e encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça que o receberá como Carta Rogatória.
Como a prisão de um aliado internacional não é uma de ofensa “à soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e/ou a ordem pública”, o Superior Tribunal de Justiça, nos termos do seu regimento interno, executaria desimpedido eventual pedido formal de detenção em face de Putin para que este seja levado às barras do TPI, em obediência às razões do mandado de prisão que, assim como o inquérito que o acusa, tramita sigilosamente.
A única margem de influência do presidente da República sobre o status criminal de alguém reside na prerrogativa constitucional de conceder “indultos e comutar penas” (art. 84, XII, CF), inaplicável a processos que sequer competem à jurisdição nacional. A única chance de Putin não ser detido seria se o Superior Tribunal de Justiça deliberadamente se furtasse a cumprir o Estatuto de Roma ao qual aderimos – ou seja, ele seria, para, em seguida, ser entregue ao Tribunal pelo Brasil.
Antes coubesse ao presidente da República alguma influência para obstaculizar eventual pedido de detenção, pois, ao descumpri-lo, o caso seria remetido pelo TPI à Assembleia dos Estados-partes que elaboraria um relatório tão eficaz quanto uma nota de repúdio, mas não é o caso. Na hipótese aqui contemplada, o presidente da República é fatalmente inerme.
Apesar disso, não é como se o presidente russo estivesse se aventurando por Estados signatários do Estatuto de Roma oferecendo sua cabeça em uma bandeja, então o mais sensato é que ele siga como tem feito: circulando apenas por países que rechaçaram a jurisdição do TPI ou que, o tendo feito, não estão arriscando comprometer suas relações com a nação russa em função do inquérito que pesa sobre o seu presidente e, portanto, não o deteriam, como já declarou o presidente da África do Sul.
Em resumo: não há qualquer chance de detenção de Putin na reunião do G20 em 2024 porque ele não vem. Putin segue solto, as relações internas entre os BRICS, incólumes.
Quanto ao incômodo relacionado às obrigações decorrentes do Estatuto de Roma e a possibilidade de denunciar o seu tratado instituidor aventados pelo presidente da República, esta seria uma alternativa antes da Emenda nº 45 de 2004 cravar no Texto Constitucional que o “Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão” (art. 5º, § 4º). Paciência.