A revista inglesa The Economist publicou, em maio, uma análise sobre as mudanças na atuação de diplomatas durante a pandemia. A conclusão é que houve um fortalecimento da chamada diplomacia digital, uma tendência que veio para ficar.
Logo que a crise sanitária caudada pelo novo coronavírus tornou-se global, fronteiras foram fechadas e grandes eventos que reuniriam autoridades diplomáticas, cancelados. Uma das soluções para continuar tratando de temas importantes, como o combate à pandemia, foi a adoção da tecnologia de videoconferência, em plataformas como Zoom, Teams e Webex.
Um bom exemplo disso foi a 15.ª reunião de cúpula do G20, em novembro de 2020. Ao invés da tradicional foto de lideranças nacionais uma ao lado a da outra no país-sede, TVs do mundo todo mostravam pequenas “janelinhas” como os líderes falando para câmaras, ladeados por bandeiras de seus países.
“Por muito tempo, falamos sobre o advento da diplomacia digital e, agora, ela realmente chegou”, diz Jonathan Black, do corpo diplomático da Grã-Bretanha. No ano passado, os diplomatas praticamente abandonaram as viagens para grandes reuniões multilaterais. A Assembleia Geral das Nações Unidas, que normalmente para Nova York por duas semanas em setembro, quando milhares de delegados entram na cidade, tornou-se um evento mais modesto, com os líderes aderindo aos discursos via internet.
Nas partes do mundo onde a vacina já está amplamente disponível, a diplomacia está recomeçando lentamente. Quando Dominic Raab, secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, receber seus pares do G7 para conversas “seguras” em Londres, de 3 a 5 de maio, foi a primeira vez que o grupo se reuniu no mesmo ambiente depois de quase dois anos. A cúpula completa do G7 na Cornualha, e a da OTAN em Bruxelas servirão como “termômetro” para a retomada da diplomacia presencial.
Nesse ínterim, um grande experimento de diplomacia virtual está em andamento. Em fevereiro, por exemplo, Joe Biden realizou sua primeira reunião de cúpula após assumir como presidente, com Justin Trudeau, do Canadá, por videoconferência. Sem deixar a Casa Branca, ele se juntou a uma reunião virtual de colegas líderes do G7 em Londres em fevereiro, marcando presença no mesmo dia para falar na Conferência de Segurança de Munique, Alemanha. Também participou virtualmente da cúpula inaugural do “Quad” (América, Austrália, Índia e Japão) em março. Em abril, reuniu 40 líderes mundiais por videoconferência para uma cúpula sobre o clima. Diplomatas de todos os lugares, acostumados a voar sem parar pelo mundo, começaram a ver as reuniões de outra maneira.
“A diplomacia não parou, na verdade, em alguns aspectos, está acelerado”, diz Nicholas Burns, um ex-embaixador, que atualmente dá aulas na Universidade de Harvard. Comunicados foram acordados, resoluções aprovadas, relacionamentos cultivados. Em alguns aspectos, os diplomatas provavelmente nunca estiveram tão ocupados.
Claro, obstáculos tiveram que ser superados. Na ONU, a Rússia se recusou a aceitar um substituto para a presença física no Conselho de Segurança, o que tornou as coisas mais lentas. Nem todos puderam estar presentes e um sistema teve que ser elaborado para votação por ofícios enviados por e-mail.
Com recepções e outras formas de entretenimento descartadas, os diplomatas tiveram que se adaptar. Em vez do jantar habitual para marcar sua passagem como presidente do Conselho de Segurança em fevereiro, por exemplo, os britânicos distribuíram cestas de piquenique para outras missões.
Fronteira tecnológica
As principais soluções, entretanto, continuam dependendo da tecnologia. Zoom, Microsoft Teams e outras plataformas permitiram que a diplomacia continuasse e abriram novas possibilidades de eficiência e alcance.
“Estamos muito melhor agora em termos de diplomacia e mediação, porque fomos forçados a pensar com mais cuidado sobre como fazer nosso trabalho”, disse Martin Griffiths, enviado especial da ONU para o Iêmen. “É uma grande mudança sísmica na forma como fazemos negócios”.
Não é a primeira vez que a tecnologia transforma o mundo dos diplomatas. Embaixadores costumavam ser “o equivalente a capitães de navios”, diz Charles Freeman, ex-embaixador americano, agora no Instituto de Assuntos Públicos e Relações Internacionais da Universidade Brown. “Eles estavam longe e não estavam sujeitos a controle.”
No Congresso de Viena em 1814-15, o ministro do Exterior britânico, Lord Castlereagh, gozava de grande autonomia, tomando decisões com a justificativa que as cartas para Londres podiam levar de quatro a seis semanas para chegar.
O telégrafo mudou tudo isso. Notícias e instruções passaram a ser transmitidas instantaneamente, para generais em batalha e diplomatas em embaixadas. Alguns reclamaram da perda de autonomia, como o diplomata britânico que lamentou a “desmoralização telegráfica daqueles que antes tinham que agir por conta própria”. O poder diplomático tornou-se mais centralizado.
Dos telégrafos ao wifi
Desde então, as viagens aéreas e as demandas do momento levaram a reuniões de cúpula mais curtas e uma aceleração geral da diplomacia. E-mail e redes sociais aceleraram ainda mais as coisas, muitas vezes contornando procedimentos cuidadosos de redação e liberação desenvolvidos para evitar erros.
Sob a presidência de Donald Trump, um tweet impulsivo poderia prejudicar os planos diplomáticos mais bem elaborados. Diplomatas modernos tiveram que se ajustar “ao aniquilamento da distância e à compressão do tempo”, conforme explica Freeman.
Agora, o covid-19 abalou ainda mais as coisas. Por um lado, reduziu drasticamente o número de viagens a serviço no estrangeiro. Além disso, muitos diplomatas foram retirados de seus cargos por precauções de saúde.
A própria pandemia também se tornou um elemento central na diplomacia, seja como parte das manobras de soft power entre os Estados Unidos, China e Rússia, ou entre aliados em tensões alimentadas pela guerra pelas vacinas. Mas seu impacto de longo prazo provavelmente será na forma como a diplomacia é conduzida, mudando as práticas de três maneiras importantes.
Em primeiro lugar, o sempre cauteloso mundo dos diplomatas acelerou a adoção de ferramentas tecnológicas. A videoconferência e outros meios de comunicação direta, especialmente via WhatsApp e (para maior segurança) Signal, têm sido utilizados de forma mais ampla. O investimento de serviços estrangeiros em tecnologia de vídeo segura deve crescer.
Martin Waehlisch, que lidera uma “célula de inovação” na ONU em Nova York, diz que a pandemia impulsionou a adoção da tecnologia de realidade virtual (RV) para dar aos tomadores de decisão em Nova York uma sensação de como é estar no terreno em zonas de conflito. Ele vê isso como “o futuro dos briefings”, substituindo os relatórios tradicionais em “fonte Times New Roman, com espaço simples, com textos em preto e branco”.
“Iraq 360”, uma experiência de RV para ajudar a mobilizar doadores, mostrou as possibilidades em 2019. Agora, as restrições às viagens levarão a investimentos em outros projetos que envolvam tecnologia como um elemento extra para informar o Conselho de Segurança. Na verdade, já existem projetos do tipo em andamento para o Iêmen, Sudão e Colômbia. Waehlisch espera que isso se torne uma prática padrão.
A segunda mudança é a produtividade aprimorada. Com a videoconferência, interagir com pessoas ao redor do mundo se tornou muito mais simples. “Tenho conseguido alcançar mais pessoas porque não estou constantemente em aeroportos ou na estrada”, disse Rosemary DiCarlo, subsecretária-geral da ONU para assuntos políticos.
Graças ao Zoom e outras plataformas, tornou-se possível para diplomatas e líderes políticos comparecerem a discursos e reuniões às quais muito provavelmente não compareceriam se sua presença física fosse exigida.
Por exemplo, 12 chanceleres e um primeiro-ministro podem não ter voado para Nova York em fevereiro para discutir o acesso global a vacinas, mas todos participaram de uma reunião virtual do Conselho de Segurança sobre o assunto. Scott Morrison, o primeiro-ministro da Austrália, dificilmente teria viajado de Canberra para as Montanhas Rochosas dos EUA apenas para falar no Fórum de Segurança de Aspen, como fez em agosto passado.
São necessários meses de planejamento de questões complexas como segurança para reunir todas as pessoas necessárias para uma reunião do G20 ou da ASEAN, mas você pode reunir presidentes e primeiros-ministros em uma tela de vídeo com relativa facilidade. Também para as negociações de paz, as plataformas virtuais permitem envolver pessoas que provavelmente não teriam tempo para entrar em um avião e passar vários dias enclausuradas em Estocolmo ou Genebra.
As reuniões virtuais também eliminaram muitas das formalidades e pompa da diplomacia tradicional. Eles são “ótimos niveladores”, diz um diplomata de um membro do Conselho de Segurança da ONU: “Eles estão na casa deles e você no seu”. Nas reuniões maiores, as autoridades sentem menos necessidade de serem breves do que quando têm a palavra depois de viajar um dia inteiro de avião para entregar uma mensagem. Como resultado, às vezes eles podem atingir o mesmo resultado, dizem os especialistas, mas de forma mais rápida.
A terceira mudança pode ser a mais importante: a pandemia acelerou os “experimentos”, incluindo uma gama mais ampla de vozes nos esforços de paz. Por algum tempo, “inclusão” foi uma palavra da moda no mundo da resolução de conflitos.
Os diplomatas sabem que os processos de paz são frequentemente vistos como algo imposto de cima ou de fora, e que tais acordos podem não ter amplo apoio. Vários órgãos de diplomacia privada, como o Centro para o Diálogo Humanitário, com sede em Genebra, trabalharam para facilitar o envolvimento de representantes locais, incluindo mulheres e jovens. Mas a logística pode ser difícil. Levar um punhado de mulheres de uma zona de conflito para a Suíça para alguns dias de discussão é um desafio, na melhor das hipóteses. Durante uma pandemia, então, mostrou ser uma impossibilidade.
Assim, os mediadores se voltaram para a tecnologia – e encontraram maneiras relativamente rápidas e fáceis de trazer pessoas que normalmente não são consultadas em um processo político ou de paz.
Diplomatas estão entusiasmados com o potencial. “Isso deve se tornar um procedimento padrão de como operamos”, acredita DiCarlo. Sua célula de inovação em Nova York reaproveitou uma ferramenta comercial normalmente usada para pesquisa de mercado para conduzir o que chama de “diálogos sincronizados em grande escala”. Esses grupos de debate parecem um bate-papo por mensagem de texto, mas têm a escala de uma pesquisa de opinião.
O primeiro experimento foi no Iêmen. Uma enquete regular com 20-30 perguntas naquele país custaria € 250.000 (R$ 1.500.000) e levaria um mês para obter as respostas, de acordo com Waehlisch da célula de inovação. O diálogo digital custou apenas uma modesta taxa de consultoria e produziu resultados instantaneamente.
“É extraordinário para a ONU estar na vanguarda dessas coisas”, disse Griffiths, o enviado para o Iêmen. “É fantástico, é a diplomacia do século 21, porque é claro que foge de homens trancados em suas salas.”
Toque pessoal
Claro, construir um relacionamento é mais difícil no Zoom do que pessoalmente. Samantha Power, quando foi nomeada por Barack Obama para ser a embaixadora na ONU, visitou cada um de seus 192 companheiros chefes de missão (com exceção da Coreia do Norte), um investimento em relacionamentos que poderia sem dúvida ser feito com muito mais facilidade hoje com o Zoom, mas certamente teria muito menos impacto.
Não há dúvidas que há sinais que só podem ser captados de um interlocutor durante uma reunião física: a reação visível. “Quando você faz uma pergunta difícil, eles empalidecem ou recuam, eles se inclinam para ela?” questiona o professor Burns, de Harvard. “Você não vai conseguir isso no Zoom.”
Além disso, as partes mais difíceis de uma negociação são conduzidas melhor pessoalmente. Se as coisas não estiverem indo bem, um bate-papo no bar ou um passeio a pé pelo local pode ajudar a criar um avanço.
O lado positivo das reuniões virtuais, os ganhos de eficiência, também podem ser vistas como seu lado negativo, pois o diplomata não tem mais aquele tempo para a conversa informal que ajuda a estabelecer confiança.
Mensagens difíceis, comum nas relações diplomáticas, podem ser entregues com mais nuances e menos danos duradouros para um relacionamento, cara a cara do que quando se luta com uma conexão de internet ruim.
Segundo os diplomatas, a confidencialidade é outra preocupação: “As questões mais delicadas não são afeitas ao virtual”, diz Griffiths. Por todas essas razões, os acordos mais delicados – como o Brexit, saída da Grã-Bretanha da União Europeia – e as conversas mais difíceis ainda terão que ser resolvidas pessoalmente.
Uma coisa é a Casa Branca convocar líderes mundiais para fazer declarações (lidas diante de uma câmara) sobre como lidar com a mudança climática, como aconteceu no Dia da Terra em abril. Outra bem diferente é persuadir os países a assinar um acordo difícil, como aconteceu nas salas de negociação da COP21, a cúpula do clima de Paris em 2015. Isso coloca uma pressão para que a COP26 em Glasgow ainda este ano possa ser realizada pessoalmente.
Portanto, as cúpulas físicas não irão acabar. Nem o papel do embaixador residente está seriamente ameaçado. Apesar da facilidade de comunicação digital direta entre os governos, diplomatas insistem que ainda não há substituto para as relações que requerem um toque pessoal, em conversas “olho no olho”.
Seria seguro afirmar que a Covid-19 acelerou a chegada da diplomacia híbrida, uma mistura do físico e digital. Ainda não é possível saber qual será a combinação ideal, mas é algo que muitos estão começando a pensar: essa é a diplomacia do amanhã.
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