Getting your Trinity Audio player ready...
|
Por Dmytro Kuleba*
Desde a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991, a região da Europa Central à Ásia Central tem sido chamada de “espaço pós-soviético”. A definição sempre foi problemática. Agora, 30 anos após o surgimento dessa denominação, está na hora de se livrar dela. O próprio conceito pressupõe, erroneamente, uma certa unidade política, social e econômica de vários países diferentes, incluindo minha querida Ucrânia. Ainda mais preocupante é que o uso do termo encoraja os políticos e o público de fora da região a verem os países integrantes dela através de uma mesma lente.
Essa abordagem simplista atende às intenções imperialistas do Kremlin. O presidente russo, Vladimir Putin, não poupa esforços para promover a falsa narrativa histórica de que ucranianos e russos constituem “uma só nação”. Sua recente obra de 5.300 palavras sobre o assunto tornou-se leitura obrigatória para os militares russos. Vladimir Putin busca reagrupar os países da ex-União Soviética e inverter o que ele chama de “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. Mas, para milhões de pessoas na região, o colapso da URSS não foi de forma alguma uma catástrofe, mas sim, uma libertação.
De fato, pouco depois de 1991, a história partilhada unia ainda os países emergentes dos escombros da União Soviética. No entanto, as trajetórias dos mesmos foram divergentes nas décadas que se seguiram, o que fez que essa experiência comum se tornasse cada vez menos relevante a eles. Os países ocidentais precisam deixar de nos ver como um simples “espaço pós-soviético”. Mas se essa construção geopolítica está desatualizada, que enquadramento deve substituí-la? O que os Estados Unidos e seus aliados deveriam mudar em suas políticas em adequação à nova realidade? No caso da Ucrânia, acima de tudo, é preciso institucionalizar o lugar do nosso país no Ocidente. É hora dos Estados Unidos e de seus aliados europeus definirem um roteiro claro para a Ucrânia finalmente aderir à OTAN e à União Europeia.
Arco de História
Em meados da década de 1980, a política de reformas de Mikhail Gorbachev, incluindo glasnost e perestroika, desencadeou forças centrífugas na União Soviética. As repúblicas da URSS começaram a se distanciar de Moscou para recuperar suas identidades nacionais e encontrar sua própria maneira de superar os problemas econômicos. Os países, soberanos antes do estabelecimento do poder soviético, começaram a regressar ao seu estado natural. Já em 1991, para surpresa de muitos políticos ocidentais, o processo terminou com o colapso da União Soviética e a proclamação de 15 Estados independentes.
Desde então, o ritmo de mudança tem variado de um país para outro. Alguns, como Belarus desaceleraram e tentaram manter sua herança soviética; outros começaram a se distanciar o mais longe possível. Os países Bálticos e as nações do antigo Pacto de Varsóvia libertaram-se do passado soviético e passaram a integrar a OTAN e a UE já na década de 1990, concluindo este processo em 2004, no momento em que o imperialismo russo ressurgia. Infelizmente, a Ucrânia e a Geórgia perderam este momento histórico. Ambos os países foram deixados de fora e ambos sofreram mais tarde ataques militares por parte da Federação da Rússia, à custa de vidas e território.
Nas últimas duas décadas, Vladimir Putin tentou restaurar o controle de Moscou sobre a região, violando fronteiras internacionalmente reconhecidas. Mas o Kremlin não foi capaz de voltar no tempo. Ao tentar dobrar o arco da história à sua vontade, Putin apenas fortaleceu as forças que pretendia subjugar. Isso se tornou ainda mais evidente após a invasão na Geórgia por parte da Rússia em 2008, e de forma ainda mais clara, após o ataque da Rússia à Ucrânia, em 2014.
Na verdade, o Kremlin já havia exercido pressão sobre Kiev muito antes da invasão militar propriamente dita. A intimidação constante à Ucrânia por parte de Vladimir Putin, aliada a decisão imprudente do então presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, de alterar o rumo pró-europeu dos governos anteriores, desencadeou protestos no final de 2013 que se transformaram na Revolução da Dignidade da Ucrânia. Após Viktor Yanukovych ter ordenado à polícia que atirasse nos manifestantes, matando mais de 100 manifestantes, o povo ucraniano o destituiu. A Rússia invadiu a Crimeia em poucos dias. Mas os ucranianos já haviam mudado de forma irreversível a trajetória do país, de modo a assegurar que nenhum governo ucraniano jamais trataria seus cidadãos da maneira como Moscou e Minsk governam os russos e bielorrussos, ou seja, com a mão de ferro atual.
Este ano, a Ucrânia celebra o 30º aniversário da independência. Milhões de jovens ucranianos não viveram um único dia na União Soviética. Muitos deles já estão criando seus próprios filhos. A ideia de um “passado soviético comum”, já em desvanecimento entre as gerações anteriores, pouco significa para eles. Esses jovens viveram duas revoluções – a Revolução Laranja, em 2004, e a Revolução da Dignidade, em 2014; e agora vivem uma guerra em curso com a Rússia. Para eles, a Ucrânia nunca conquistou a independência; ela sempre foi independente.
Contra esferas de Influência
Na Ucrânia e em outros lugares, o rompimento dos laços com Moscou continuará, independentemente do que Vladimir Putin ou sua comitiva tenham a dizer sobre o assunto. Portanto, os Estados Unidos e os parceiros ocidentais têm a oportunidade de desenvolver uma estratégia ambiciosa para a região, que incluirá uma política específica, adaptada às circunstâncias de cada país e bloco.
No caso da Ucrânia e da Geórgia, avançar com a adesão à OTAN deve ser a prioridade máxima. Tal como a própria OTAN afirmou em sua declaração final na Cimeira de Bucareste, em 2008 e reafirmou na Cimeira de Bruxelas deste ano, esse dia chegará inevitavelmente. Ambos os países já participam das atividades da OTAN como parceiros de oportunidades aprimoradas. Juntamente com a Bulgária, a Roménia e a Turquia, as contribuições da Ucrânia e da Geórgia são fundamentais para a segurança da região do Mar Negro. A Rússia tem se tornado cada vez mais agressiva na região: prejudicando o comércio e a liberdade de navegação, aumentando suas capacidades militares convencionais e nucleares na Crimeia ocupada e usando seu território como centro logístico para suas atividades militares no Oriente Médio.
Além da cooperação em matéria de segurança, Ucrânia e Geórgia também estão empenhadas em aprofundar a integração econômica e política com a Europa. Juntamente com o seu homólogo da Moldávia, os chanceleres da Ucrânia e da Geórgia fundaram este ano o “Trio Associado” em Kiev, com o objetivo expresso de aderir à União Europeia. Para a Europa, o aprofundamento do envolvimento com o grupo é uma oportunidade de fortalecer sua influência global, expandir o alcance de seus valores democráticos e reforçar sua musculatura econômica. Para os Estados Unidos, este aprofundamento servirá para os objetivos da administração de Joseph Biden de manter a unidade transatlântica e fortalecer a fronteira oriental da Europa democrática.
As capitais ocidentais também têm a oportunidade de aumentar sua influência nos países onde Moscou historicamente detém influência. Os vizinhos da Geórgia no Sul do Cáucaso, Armênia e Azerbaijão, merecem atenção especial. A abordagem correta no tocante às relações com eles pode, a longo prazo, contribuir em muito para aumentar a confiança entre o Ocidente e a Turquia, um importante aliado da OTAN. A Rússia recentemente buscou aumentar sua influência apresentando-se como um pacificador e mediador de conflitos na região. Na Armênia, no entanto, o primeiro-ministro Nikola Pashinyan foi inesperadamente reeleito, considerado um líder inclinado ao equilíbrio ao invés de ceder às potências estrangeiras. Esse fator, aliado ao fortalecimento da aliança entre Turquia e Azerbaijão, abre para o Ocidente uma oportunidade de limitar a influência da Rússia na região.
A experiência da Ucrânia mostra que a Rússia está gradualmente perdendo sua posição de monopólio na Ásia Central. Desde 2014, Moscou tenta bloquear o acesso de Kiev à região, no entanto, encontramos maneiras de contornar os obstáculos. Nossos esforços consistentes que visam restaurar laços comerciais tradicionalmente fortes, envolver a diáspora e criar oportunidades de estudo na Ucrânia começaram a dar frutos.
Mesmo na Belarus, é pouco provável que a pressão democrática diminua a longo prazo, deixando o Ocidente com espaço para influência, apesar das tentativas de Alexander Lukashenko, apoiado pelo Kremlin, de consolidar seu governo.
A Rússia ainda é uma forte potência regional. Mas, de Minsk, no oeste, até Ulaanbaatar, no leste, Moscou há muito perdeu seu monopólio da influência política.
A proximidade geográfica com a Rússia não deve limitar as estratégias de Washington ou Bruxelas para nenhum país da região. Afinal, nenhuma preocupação com as fronteiras comuns impediu o crescimento da China, que cultivou laços profundos com vários países da região que historicamente estiveram sob o controle de Moscou.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e seus aliados europeus deveriam descartar a ideia de que, cooperando com o Kremlin, poderiam impedir a aproximação entre Rússia e China. Moscou está há muito tempo na órbita de Pequim e, muito provavelmente, ela já esteja bem ciente dos riscos de uma maior reaproximação com uma China muito mais poderosa.
Ocidente Unido
A adesão da Ucrânia à OTAN e à União Europeia não apenas fortalecerá o progresso da Ucrânia; ajudará a unir o Ocidente. Como um representante ativo na política internacional na Europa Central e Oriental e na região do Mar Negro, a Ucrânia pode trazer benefícios significativos para a OTAN em questões de segurança regional. As Forças Armadas de nosso país têm uma experiência inestimável de combate contra ao exército russo desde a invasão russa em 2014. Nenhum dos atuais Estados membros da OTAN dispõem da experiência e do conhecimento que a Ucrânia pode oferecer. Em questões de cibersegurança e combate à desinformação, poucos países podem competir com a capacidade da Ucrânia de reconhecer e combater as táticas da Rússia.
A Ucrânia também tem papel vital para garantir a independência energética da Europa. Planejamos continuar a desempenhar esse papel, apesar das tentativas da Rússia de contornar o sistema de transporte de gás ucraniano com projetos como o Nord Stream 2. A Ucrânia oferece a vantagem de sua infraestrutura única de transporte de gás, que inclui o terceiro maior armazenamento subterrâneo de gás do mundo e quase 23.000 quilômetros de gasodutos. Dado o enorme potencial da Ucrânia na produção de hidrogênio usando energia solar e eólica, nosso país tem posição de destaque para contribuir com a “transição verde” da Europa. Outros setores da economia ucraniana também são muito promissores, desde o ritmo impressionante nas tecnologias digitais, passando por um forte setor agrícola que promove o papel da Ucrânia como mantenedor da segurança alimentar global.
A Ucrânia já fez progressos significativos em suas reformas, embora sejam necessárias mais transformações internas. Em primeiro lugar, no quesito da erradicação da corrupção. O governo já estabeleceu uma série de medidas significativas, incluindo a histórica abertura do mercado de terras no mês passado, que irá aumentar a transparência e impulsionar a economia. Outras leis cruciais foram finalmente aprovadas neste verão para limpar o judiciário, concedendo aos peritos internacionais um papel crucial na seleção de juízes. Somos realistas quanto ao que há por fazer para combater a corrupção no judiciário, no setor de defesa e segurança e em outras instituições. Mas há uma forte vontade política de seguir em frente: isso se evidencia pelos últimos passos ousados que foram dados, apesar da enorme resistência de interesses de forças ligadas à corrupção.
Sob a liderança do Presidente Volodymyr Zelensky, a Ucrânia está totalmente empenhada em acelerar as transformações internas, que vão ao encontro das expectativas dos nossos parceiros europeus e transatlânticos. Mas o principal é que são as exigências do povo ucraniano, que fez sua escolha e pagou um alto preço defendendo-a. Ao que parece, hoje as forças da história também estão ao lado dos ucranianos.
Ao mesmo tempo, os esforços da Ucrânia não serão bem sucedidos sem o forte apoio da UE, da OTAN e de seus Estados-membros. As medidas tomadas devem ser recíprocas, por todas as partes, e atuando para o objetivo da adesão da Ucrânia em ambas as organizações. Os Estados Unidos e a Europa devem reconhecer que a Ucrânia é parte integrante do Ocidente. Só então teremos a prova de que nossos esforços atuais não são em vão.
* Dmytro Kuleba é Ministro de Relações Exteriores da Ucrânia. Este artigo foi publicado originalmente na revista Foreign Affairs