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Por Jason Bordoff* e Meghan L. O’Sullivan**
Não é difícil entender por que as pessoas sonham com um futuro moldado pela energia limpa. À medida que as emissões de gases de efeito estufa continuam a crescer e os eventos climáticos extremos se tornam mais frequentes e prejudiciais, os esforços atuais para substituição dos combustíveis fósseis parecem bastante inadequados.
Para aumentar a frustração, a geopolítica do petróleo e do gás continua viva e grande como sempre. A Europa está passando por uma forte crise energética, com os preços escalonados da energia elétrica forçando empresas em todo o continente a fecharem e inclusive com algumas do ramo declararem falência, aumentando a busca pelo gás natural vindo das reservas russas.
Em setembro, blecautes na China supostamente levaram o vice-premiê Han Zheng a instruir as empresas estatais de energia a garantir o abastecimento para o inverno a qualquer custo. À medida que os preços do petróleo ultrapassaram US$ 80 o barril, os Estados Unidos e outros países que consomem grande quantidades de energia estão implorando aos principais produtores, incluindo a Arábia Saudita, para aumentar sua produção, dando a Riad mais influência em um relacionamento muitas vezes tenso e reposicionando os limites da sua anunciada “independência” energética.
Os defensores da energia limpa esperam (e às vezes prometem) que, além de mitigar as mudanças climáticas, a transição energética ajudará a tornar os questionamentos sobre os recursos naturais uma coisa do passado. A verdade é que a energia limpa transformará a geopolítica – mas não necessariamente da maneira que muitos esperam.
A transição irá reconfigurar muitos elementos da política internacional que moldaram o sistema global desde, pelo menos, a Segunda Guerra Mundial, afetando significativamente as fontes de poder nacional, o processo de globalização, as relações entre as grandes potências e a convergência econômica em curso dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Tal processo será confuso, na melhor das hipóteses. Bem longe de promover cortesia e cooperação, provavelmente produzirá novas formas de competição e confronto muito antes de uma nova geopolítica mais estruturada tomar forma.
Falar de uma transição suave para a energia limpa é fantasioso: não há como o mundo evitar grandes dificuldades na tentativa de refazer todo o sistema de energia, que é a força vital da economia global e sustenta a ordem geopolítica. Além disso, a expectativa convencional sobre quem vai ganhar ou perder frequentemente está errada.
Os chamados petroestados, por exemplo, ainda podem desfrutar de prosperidade antes de viver períodos de vacas magras, porque a dependência dos grandes fornecedores de combustíveis fósseis, como Rússia e Arábia Saudita, provavelmente aumentará antes de acabar. Ao mesmo tempo, as regiões mais pobres do mundo precisarão usar grandes quantidades de energia – muito mais do que no passado – para prosperar, embora também enfrentem as piores consequências das mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, a energia limpa passará a representar uma nova fonte de energia nacional, enquanto traz consigo novos riscos e incertezas.
Esses não são argumentos suficientes para desacelerar ou abandonar a transição energética. Pelo contrário, todos os países devem acelerar os esforços para combater as mudanças climáticas. Mas os formuladores de políticas precisam olhar além dos desafios da mudança climática e a avaliar os riscos e perigos que resultarão da transição irregular para a energia limpa.
Como consequência, agora do que as implicações geopolíticas de longo prazo de um mundo distante do “zero líquido” são os perigos às vezes contraintuitivos de curto prazo que devem chegar nas próximas décadas, conforme a nova geopolítica da energia limpa se combina com a velha geopolítica do petróleo e gás.
A falha em avaliar as consequências não intencionais de vários esforços para chegar ao “zero líquido” não terá apenas implicações econômicas e de segurança; também irá minar a própria transição energética. Se as pessoas passarem a acreditar que planos ambiciosos para enfrentar a mudança climática colocam em risco a confiabilidade ou acessibilidade energética ou a segurança do abastecimento de energia, a transição será lenta. Os combustíveis fósseis podem eventualmente desaparecer. Já a política – e geopolítica – da energia, continuará sempre existindo de uma forma ou de outra.
A Primeira Guerra Mundial transformou o petróleo em uma commodity estratégica. Em 1918, o estadista britânico Lord Curzon disse que a causa aliada “surfou para a vitória sobre uma onda de petróleo”. Desse ponto em diante, a segurança britânica dependeu muito mais do petróleo da Pérsia que do carvão de Newcastle, já que a energia se tornou uma fonte de poder nacional e sua ausência, uma vulnerabilidade estratégica.
No século que se seguiu, países com amplas reservas de petróleo e gás desenvolveram suas sociedades e exerceram um poder desproporcional no sistema internacional. Já os países onde a demanda por petróleo ultrapassou sua produção distorceram suas políticas externas para garantir acesso contínuo a ele.
Um afastamento do petróleo e do gás irá reconfigurar o mundo de forma igualmente dramática. Mas discutir questões sobre a como será um futuro com energia limpa muitas vezes ignora alguns detalhes importantes. Por um lado, mesmo quando o mundo atingir emissões líquidas zero, isso dificilmente significará o fim dos combustíveis fósseis.
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*Jason Borddoff é reitor da Escola de Clima de Columbia e Diretor Fundador do Centro de Política de Energia Global da Escola de Relações Públicas e Internacionais da Universidade de Columbia. Durante o governo Obama, atuou como assessora especial do Presidente e Diretor Sênior de Energia e Mudanças Climáticas na equipe do Conselho de Segurança Nacional.
**Meghan O’sullivan é professora de Prática de Assuntos Internacionais na Harvard Kennedy School e autora do livro “Windfall: Como a nova abundância de energia altera a política global e fortalece o poder da América”. Durante o governo de George W. Bush, atuou como assessora especial do presidente e conselheira adjunta de segurança nacional para o Iraque e o Afeganistão.
Parte 1 do texto publicado originalmente em Foreign Affairs