Por Pedro Merheb
A revolução húngara de 1956 é um marco na história moderna do Leste Europeu como um todo. Embora não houvesse um escopo regional, foi o primeiro levante bem-sucedido dos Estados satélites da finada União Soviética por soberania.
Uma das nações mais injustiçadas da vizinhança continental pelos tratados que sucederam à Grande Guerra, a Hungria estava novamente no centro das turbulências que contam a história da Segunda Guerra Mundial. Após a invasão nazista, a soberania húngara foi capturada pelas forças do lado de lá da cortina de ferro, espalhando hordas de imigrantes por todo o Ocidente, o que nos inclui.
Nos anos sessenta, vovó desceu de Belém a Paulo Afonso, Bahia, para erguer a hidrelétrica que aposentaria as velas e lamparinas Nordeste afora. Por lá encontrou água e húngaros.
Um, fora fotógrafo da Kodak em Berlin – não manjava de usina, mas manjava de trabalho. O outro, Ministro das Finanças da Hungria – também não manjava de usina, mas manjava de trabalho.
O último foi o primeiro a chegar. Em sua terra natal, chegou a ser capturado pouco depois do Reich se impor sobre os magyares, mas conseguiu escapar, deixando esposa e filha para que não fossem punidas pela sua ascendência judaica. Quando vovó o conheceu, ele já estava há mais de quinze anos por aqui, sem elas e sem notícias.
De todas as cidades no Brasil, Paulo Afonso, então uma modesta municipalidade alojada às margens do São Francisco no Norte baiano, foi selecionada como o porto seguro de tantos húngaros que aqui desembarcaram. O processo que conduziu a essa escolha é desconhecido, pois vovó só aprendeu a contar até dez em húngaro com os seus colegas.
Em 1956, ano da revolução e da publicação de Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa promove uma imersão etnográfica no universo húngaro no prefácio escrito à Antologia do Conto Húngaro, de Paulo Rónai, que, antes do Brasil, penara seis meses em um campo de trabalho forçado. Em uma das passagens, o diplomata mineiro observa sem desfazer-se do estilo que coroa a sua lavra: “Constantemente ameaçados em sua liberdade, aperfeiçoaram extremo apreço à liberdade, uma capacidade de compreensão e entusiasmo, um imenso prazer de existir, um amplo respeito por todas as formas do viver, próprio e alheio; se bem que guardem uma intrepidez decidida e resignada, oriental, em face da morte. (…) Povo de toda fidelidade, de muita alma”.
Movidos pelo instinto que protege os sobreviventes, aqui estavam ávidos pelo trabalho, prontos para eletrificar o Nordeste brasileiro por meio do que hoje conhecemos como o Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso. Lamentavelmente, a Hungria livre, indomada, que renasce em 1956 como uma mensagem de fé para toda a Europa oriental, não veio a ser conhecida por muitos dos que aqui chegaram.