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Ao longo da história da humanidade, as religiões, ou melhor, as diferenças entre elas, foram um dos motores dos conflitos entre sociedades. As tensões são especialmente latentes em lugares onde coexistem um grande número de manifestações religiosas. O Oriente Médio, onde surgiram as três grandes religiões monoteístas, e o Norte da África (Magrebe) são dois exemplos disso.
As análises feitas na Europa e na América costumam reduzir a complexidade das sociedades orientais aos estereótipos aos quais comumente são associados. Um desses estereótipos é a percepção das religiões como principal motivo por trás dos muitos conflitos que assolam a região, ignorando outros fatores como a desigualdade econômica, os interesses geopolíticos e, sobretudo, as consequências históricas do colonialismo. Além disso, para especialistas renomados como Gregory Gause III, a religião funciona como um canal pelo qual as elites de países do Oriente Médio buscam proteger seus interesses, que pode envolver o acirramento do conflito entre grupos religiosos opostos no mesmo país.
Em última análise, a religião por si só não explica o histórico de conflitos no Oriente Médio e no Norte da África. No entanto, desempenha um papel de destaque nas relações internacionais. Mais recentemente, uma “diplomacia da religião” passou a ser explorada por governos de todo o mundo como uma ferramenta para facilitar o entendimento entre países, sem descuidar dos interesses nacionais.
Isso ficou especialmente latente nos últimos dois anos no Oriente Médio e no Magrebe. Nesse período ocorreram movimentos geopolíticos sem precedentes que levaram a uma reconfiguração progressiva das relações entre os países e a um realinhamento de alianças. Os Acordos de Abrahão, assinados em agosto de 2020 entre Israel e dois países árabes – Emirados Árabes Unidos e o Bahrein – consolidaram a aproximação silenciosa mas imparável que durante anos se observava entre Tel Aviv e vários governos da península Arábica. Por meio dos Acordos afiançados pelos Estados Unidos, Israel obteve o reconhecimento formal pelos Emirados e pelo Bahrein, seguido pela abertura dos mercados domésticos israelenses aos investidores desses países e vice-versa.
O Marrocos não demorou muito para aderir aos acordos e normalizar suas relações com Israel em dezembro de 2020. Tradicionalmente, o reino alauita tem adotado uma postura menos crítica em relação a Israel em comparação a outros governos do mundo árabe. Isso fica evidenciado pelo fato de André Azoulay, de origem judaica, ser um dos principais conselheiros e confidentes do rei Mohamed VI. No entanto, até 2020, Marrocos e Israel não mantinham relações diplomáticas.
Os Acordos de Abraão, longe de enfocar apenas questões econômicas, têm caminhado lado a lado com uma maior cooperação em questões religiosas. A própria referência a Abraão, pai das três religiões monoteístas, no nome dos acordos é evidência que seu objetivo não é apenas tentar resolver um conflito político, mas também a promoção do entendimento religioso.
Os Emirados Árabes Unidos (EAU) aproveitaram os laços com Israel para promover um diálogo entre as religiões majoritárias em ambos os países, Islamismo e Judaísmo. Em 16 de novembro de 2020, ministros de Israel e dos EAU participaram de um evento com representantes de oito religiões presentes nas duas nações para comemorar o Dia Internacional da Tolerância. Os acordos também serviram para alertar sobre a discriminação por motivos religiosos, como mostra um memorando histórico contra o antissemitismo assinado entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Estados Unidos em outubro de 2020.
Desde 2019, o governo dos Emirados atribui grande importância à diplomacia da religião. Um bom exemplo disso foi a visita do Papa Francisco aos Emirados naquela ano. Pela primeira vez na história um papa esteve na Península Arábica. O Bahrein também está desenvolvendo ações diplomáticas tendo a religião no centro, exemplificada pela inauguração, em dezembro de 2021, da Catedral de Nossa Senhora da Arábia, na cidade de Awali, maior templo cristão do Golfo Pérsico, com capacidade para cerca de 2.500 pessoas.
Israel, Emirados e Bahrein percebem a diplomacia da religião e a promoção da tolerância religiosa como um pilar de seu soft power, ou seja, sua capacidade de ser visto de forma atrativa pelos cidadãos e governos de outros países.
Marrocos também aderiu à diplomacia da religião, especialmente desde o reconhecimento mútuo com Israel. O governo marroquino anunciou, em dezembro de 2021, a reabilitação de mais de 13.000 tumbas judias na cidade de Fez, além da restauração de sinagogas e outros locais de culto. Embora a comunidade judaica no país atualmente seja de apenas alguns milhares, a história do Marrocos está ligada ao judaísmo, sendo o lar de mais de 300.000 judeus em meados do século XX. Conforme apontou o censo de 2019., cerca de 7% da população judaica em Israel tem ascendência marroquina,
Na verdade, em 2016. bem antes da assinatura dos Acordos de Abraão, grandes renovações de locais de culto judaicos foram realizadas, como o da sinagoga Ettedghi, em Casablanca. Mesmo assim, os Acordos abriram novos caminhos de cooperação entre Marrocos e Israel, como mostram as recentes escavações na Cordilheira do Atlas, realizadas por uma equipe de arqueólogos dos dois países. A preservação da riqueza cultural e religiosa e a promoção do diálogo intercultural tornaram-se um dos principais objetivos dos Acordos e um pilar da diplomacia de ambos os países.
Com isso, um novo capítulo foi aberto nas relações entre árabes e israelenses. Embora impulsionados por interesses comerciais e diplomáticos, os Acordos de Abraão também proporcionaram uma oportunidade única de melhorar o entendimento entre seguidores de religiões diferentes. A diplomacia da religião mostra que proteger os interesses nacionais nem sempre está em conflito com a promoção do respeito e da tolerância entre povos e pessoas de diferentes culturas e credos.
* Advogado internacionalista, com mestrado em Política Internacional pela SOAS – Universidade de Londres. Texto publicado originalmente no site Atalayar.